sexta-feira, fevereiro 24, 2006

FRANK X. GASPAR

Descobri este poema sobre o mar há alguns anos atrás, numa altura particularmente interessante da minha vida em que regressava de Nova Iorque onde fui estagiar em Cirurgia Reconstrutiva, e andava fascinado com o filme A Tempestade Perfeita, através do qual procurava referências sobre a emigração portuguesa, entre outros sítios para Nova Inglaterra, prestando tributo à memória do meu avô paterno que esteve emigrado em Newark durante sete anos. FRANK X. GASPAR é um poeta luso-americano que nasceu em Provincetown, Massachusetts, em 1946. Vive na Carolina do Sul e ensina no Long Beach City College. O que escreveu sobre o seu poema Kapital iluminou a minha procura: “Este poema é sobre um homem que foi meu padrasto durante dez anos. Era verdadeiramente um operário, um trabalhador português que trabalhava nas traineiras em Provincetown, Massachusetts, onde cresci. Eu andava a ler Marx por essa altura, quando escrevi este poema e o léxico demonstra isso mesmo. Há várias vozes no poema, falando dele para o mundo e de outros mundos para o poema. Espero que alguma coisa da difícil vida deste homem brilhe aqui, por um momento.



KAPITAL

Hooking boxes of dogfish
across the packinghouse floor,
take the fat grease pencil you
use to mark 36/BOS or 42/NY
on the split-pine boxlids
and draw a circle around
the place where labor becomes
surplus or where my stepfather’s
cigarette, thirty cents a pack
in those days, went sparkling
from his lip when his boot
hit the wet ice, when he went
under the wheels of the forklift:
Three cents a pound, twenty thousand
pounds, packed in ice and stacked:
Take your allowance for boxes,
the box-makers in their wire cages
pumping pedals, take your
allowance for diesel, take
the boat’s share, the owner’s
two shares, the skipper’s son’s
half-share, take making that ripped
pair of gloves last another week,
take him hot soup and bread,
take him his worthless union card
and his thermos of coffee
and his watchcap over his ears:
You can’t save him – he only
wanted to come home to a hot supper,
hash and eggs in the blackened pan
and then lean against the iron stove
to warm his back before bed.
But there’s nothing you can do
in your small child’s terror
when the woman says, What
will we eat? How will we live?

You will eat and you will live,
this time, in this life, though
in other times, you have perished,
and on winter mornings thereafter
you have risen to the lunch pail
and drifted along the glazed wharves
and reckoned your wage on your fingers,
your hard eye drawing its essential light
skyward from the idle trawlers
while they locked and buckled
in the freezing harbor.



§



KAPITAL
Empilhando caixas de cação
ao longo do pátio da conserveira,
pega no lápis grosso e ensebado que
usas para marcar 36/BOS ou 42/NY
nos tampos de pinho
e faz um círculo à volta
do ponto onde trabalho se torna
lucro ou onde o cigarro do meu
padrasto, trinta cêntimos o maço
por esses dias, ia cintilando
desde o seu lábio quando sua bota
atingia o gelo molhado, quando descia
sob as rodas do camião-guindaste:
Três cêntimos a libra, vinte mil
libras, empacotadas em gelo e empilhadas:
Tira os custos para caixas,
os madeireiros em suas jaulas de aço
bombeando pedais, tira o teu
custo para gasóleo, tira
a parte do barco, as duas partes
do proprietário, a meia-parte do
filho do capitão, tira o fazer aquele par
de luvas rasgado durar outra semana,
leva-lhe sopa quente e pão,
leva-lhe o seu inútil cartão do sindicato
e a sua termos de café
o seu boné de vigia sobre as orelhas:
Não o podes salvar – ele só
quis voltar para casa para um jantar quente,
picado e ovos numa panela enegrecida
e inclinar-se depois sobre o fogão de ferro
para aquecer as costas antes da cama.
Mas não há nada que possas fazer
no teu terror de criança pequena
quando a mulher diz, O que
comeremos? Como viveremos?

Tu comerás e viverás,
desta vez, nesta vida, embora
noutros tempos tenhas perecido,
e em ulteriores manhãs de Inverno
te tenhas levantado da selha do almoço
arrastado ao longo do cais espelhado
calculando o teu salário pelos dedos,
teu difícil olhar desenhando sua luz essencial
elevando-se das traineiras vazias
enquanto se trancavam e afivelavam
no porto enregelado.



A quem, como eu, tiver o mito da Nova Inglaterra, aconselho vivamente que perca mais uns minutos a ler esta excepcional entrevista conduzida pelo jornalista António Oliveira a Frank X. Gaspar, publicada no MUNDO PORTUGUÊS e aqui reproduzida na integra com a devida vénia, onde o poeta além de falar de si e da sua escrita nos oferece um retracto da vida nas comunidades piscatórias de Provincetown.


Frank X. Gaspar é um escritor bem conhecido no mundo literário norte-americano, especialmente nos círculos da edição poética, já que os seus primeiros livros são de poemas. É o autor de “The Holyoke”, “Mass for the Grave of a Happy Day” e “A Field Guide to the Heavens”, todos eles livros premiadas. “Mass for the Grave of a Happy Day” foi galardoado com o prémio Anhinga de Poesia em 1994 e “A Field Guide to the Heavens” com o Britting Prize in Poetry. A sua última obra, porém, não é poesia mas uma novela intitulada “Leaving Pico”, publicada em 1999 e bem recebida pela crítica, nomeadamente pelo “The New York Times”. Trata-se da sua primeira incursão na prosa (ao nível da publicação), mas as críticas não poderiam ter sido melhores. Tudo isto não nos chamaria a atenção se Frank X. Gaspar não fosse um luso-americano descendentes de açorianos, nascido e criado em Provicentown, Massachussetts, e escrevesse sobre o seu sentir português. “Leaving Pico” é a história de uma família portuguesa de Provincetown e o seu dilema perante as novas situações que o dia-a-dia americano lhes traz. O “The New York Times” escreveu dela: “A simple and satifaying first novel... Gaspar’s novel is an expert portrait of the Portuguese immigrant experiences, from its resistance to full integration”. Depois de Catherine Vaz, Gaspar é mais um luso-americano a fazer história na literatura americana. Frank X. Gaspar é neto de açorianos da ilha do Pico que emigraram para a América no princípio do século. Jesse e Rosa Gaspar terão sido os primeiros a deixar o Pico, trazendo consigo o avô de Frank, nascido na ilha por volta de 1880. Este aprendeu inglês em New Bedford, onde foi condutor de eléctrico antes de se mudar para Provincetown para se dedicar à pesca da amêijoa. Viria a tornar-se o supervisor desta actividade (Clam Warden). Ambos os lados da família estão ligados pelo mar, pois o seu bisavô, Antone Costa, foi também pescador, mas de baleias. Deve ter emigrado para os Estados Unidos em fins do século XIX ou princípios do XX. Desapareceu no mar em 1913. Os seus pais já nasceram em Provincetown, então uma cidade piscatória sobretudo ocupada pela comunidade açoriana. Frank Gaspar também aqui nasceu e cresceu até aos 17 anos, altura em que decidiu sair de casa em busca da sua «fé». Sabia que queria ser um escritor, mas era necessário entender primeiro as complexidades do mundo fora da sua pequena cidade «portuguesa» de Provincetown. Trabalhou então em vários empregos em New York e Boston durante ano e meio até decidir fazer-se ao mar (instinto ancestral?) como embarcado. Por aqui se manteve durante três anos e meio, até aos 24 anos, altura em que decidiu matricular-se na Universidade para concluir um curso superior.

Mundo Português — Quando é que sentiu que escrever era aquilo que realmente queria fazer?
Frank X. Gaspar — Sempre soube que seria um escritor. Eu sei que isso parece esquisito, mas é a verdade. Quando era criança costuma rabiscar em tudo o que era papel, e na escola, em vez de fazer os trabalhos de casa, escrevia poemas e pequenas histórias. A escrita a sério, porém, só começou no colégio. Como já tinha 24 anos, tirei todas as disciplinas de escrita que pude e lia sem parar. Acho que esta foi a primeira vez que comecei a levar-me a sério.
MP — O mar é qualquer coisa que está sempre presente na sua vida e livros...
FG — O mar está nos meus ossos. Cresci à beira-mar e todos os homens de sucesso na minha cidade eram pescadores. Outros, tais como o meu padrasto, trabalham na indústria do peixe ou no cais. Isto foi nos dias de glória de Provincetown, quando a cidade era como uma base de Portugal e a frota pesqueira, toda ela portuguesa, andava à volta dos oitenta navios. Quando penso na minha herança portuguesa, penso nesses tempos, nesses homens corajosos, nos bares de pescadores, no agradável cheiro do peixe, dos barcos presos ao cais, do cheiro do gasóleo... Foi um tempo de uma beleza ímpar, mas também de trabalho duro. Imagine um miúdo a crescer num ambiente destes! Eu fui dono do meu próprio barco aos 16 anos. Era um barco usado, que deixava entrar água e para o qual comprámos um motor de cinco cavalos em terceira-mão. Pescava então cavala e solha e era obrigado a tirar-lhe a água de quinze em quinze minutos. Mas era maravilhoso. Todos nós éramos bons conhecedores do oceano. Mergulhávamos para apanhar as moedas lançados pelos turistas dos barcos e pescávamos amêijoa. Descrito desta forma, parece um paraíso, mas a verdade é que nós éramos pobres, e há também uma face negativa nisto tudo. Mesmo assim, a beleza estava em todo o lado, especialmente nas pessoas, esses maravilhosos portugueses, os mais velhos, e depois a geração dos nossos pais. Que mundo esse!
MP — Você foi educado na cultura portuguesa, com valores como o respeito pelos mais velhos, a religião, etc. Até que ponto é que isto influenciou a sua escrita?
FG — A minha escrita, muita da poesia e certamente toda a novela, vêm do amor que sinto pelas tradições da minha herança cultural. Desde cedo que prometi a mim mesmo escrever um livro sobre a minha terra natal, sobre os seus dias de glória, a beleza da comunidade portuguesa, as suas privações e maravilhas. Tudo isto é consequência da nossa maneira de ser muito portuguesa de preservarmos e respeitarmos o passado. Sinto que tenho uma grande dívida para com os já desaparecidos. A novela foi uma tentativa de dar vida novamente a essas pessoas e a esse tempo, da mesma forma que levamos flores à campa dos que já morreram e falamos com eles. Sempre que visito Provincetown desloco-me até à campa onde estão os meus antepassados. Às vezes levo vinho português, que o meu avô tanto adorava. Então sirvo um pouco para ele e bebemos os dois. Gosto muito de conversar com ele e nos últimos tempos há sempre uma imagem que me vem à memória. É a imagem de homens num baleeiro, remando com força e gritando. Neva sobre a baía e o homem está vestido com um casaco e chapéu de lã. Reconheço o meu tio e o meu avô, mas não tenho a certeza quem são os outros. Mas sei que eles são meus antepassados de alguma forma. E depois há um acento vazio e um remo na proa. Esse será o meu lugar. Eles virão buscar-me quando eu morrer para me juntar a eles no barco e remar e gritar pelo mar cheio de neve, quem sabe para onde... Esta é a imagem que eu vejo. Sei que um dia me juntarei a eles e que será uma reunião feliz. Mesmo assim, espero que esse dia não chegue demasiado cedo. Tenho mais livros para escrever...
MP — Os seus três primeiros livros são poesia, mas o último é uma novela. Começou por escrever poesia ou prosa?
FG — Eu comecei a escrever pequenas histórias. Eram boas, mas não o suficiente. Comecei a escrever poemas porque me permitiam exprimir as coisas de uma forma mais directa. O meu primeiro livro, “The Holyoke”, é praticamente todo acerca da minha experiência de crescimento na comunidade portuguesa de Provincetown. As histórias não me levam até esse passado com tanta emoção.
MP — Pode explicar a presença da sua herança cultural portuguesa nos seus poemas?
FG — Não posso dar uma explicação muito adequada. Durante anos eu pensei que nós — quero dizer, os «Provincetonianos» — éramos os únicos portugueses nesta terra. Eu não tinha ideia nenhuma da quantidade de portugueses que residiam em outras áreas da América e desconhecia a existência de publicações em português, tal como esta, ou organizações e associações. Senti-me isolado, mas sinto-me também na obrigação de contar a minha história, a NOSSA história. O meu coração bate em português, os meus primeiros cheiros são os cheiros da casa portuguesa, do peixe salgado, da sopa de couves. As nossas festas eram celebradas à maneira portuguesa, não só porque os nossos pais queriam preservar as tradições, mas porque eram aquilo que eles conheciam.
MP — Pensa que essa influência é fundamental na sua obra literária? De que forma?
FG — Sim, tem sido fundamental. Tal como disse Mary Oliver acerca do meu primeiro livro, “O seu povo é português”. Esse livro nasceu directamente das minhas raizes. Onde é que isso me vai levar, não sei. Agora estou a aprender muita coisa sobre a língua e a escrita portuguesa, mas não tenho nenhuma ideia onde isso me vai levar. Certamente que há um elemento espiritual no meu trabalho que vem claramente da minha exposição às influências da religião católica quando era criança. Penso que no futuro me dirigirei por aí — pelos temas espirituais. Mas, quem pode dizer?
MP — O seu último livro, “Leaving Pico”, é uma novela. Porque é que decidiu escrever em prosa?
FG — As personagens e o cenário exigiam a maior esfera de acção de uma novela. Algumas das personagens da história aprecem no primeiro livro, “The Holyoke,”, escrito nos anos 80. Foi aqui que Josie Carvalho “se revelou”, aparecendo em dois ou três poemas. Ernestina, a esposa do sapateiro, apareceu também num desses primeiros poemas, tal com o avô e o tio-avô. O velho Coelho aparece no meu segundo livro de poemas, “Mass for the Grace of a Happy Death”. Mas estes pequenos poemas não dão o espaço a estas personagens que elas precisam para se desenvolverem. Daí ter decidido escrever uma novela. Foi como uma promessa de sangue. Jurei que eles seriam as personagem na novela. Mesmo que eu não pudesse publicá-la, penso que teria fotocopiado as páginas para as distribuir de mão em mão na minha cidade. Estava mesmo preparado para fazer isso...
MP — Trata-se de uma história passada na comunidade portuguesa de Provincetown. O que é que no livro é real e o que é que é ficção?
FG — Bom, devo começar por dizer que a novela NÃO é um autobiografia, como muitas pessoas tentam fazer crer. Por outro lado, também não é histórica nem sociológica. É uma trabalho da imaginação do escritor. No entanto, a cidade é muito real. As casas, as pessoas, o nosso modo de vida, os barcos de pesca, a baía, o oceano. Tudo é real. O narrador não sou eu e a família não é a minha e nada da história me aconteceu a mim. Mas devo dizer que cada tábua e prego da casa do Carvalho é real. Eu cresci nessa casa (não havia nenhuma antena no telhado, posso assegurar-lhe) e nós não tínhamos um vizinho “Lisboa”. Havia uma fábrica de conservas perto da casa que nós adorávamos.
MP — O jornal The New York Times disse do livro que ele é um retrato fiel da comunidade portuguesa e da luta que esta trava na América contra a integração. Acha que os portugueses são mesmo assim? Vivem aqui fisicamente mas o coração ficou em Portugal?
FG — Essa crítica do New York Times é muito interessante. Acho que o “retrato fiel” é um pouco exagerado, mas penso que captei uma pequena parte do modo de vida de uma pequena cidade. Mas não podemos ignorar que há tantas e tão diferentes comunidades portuguesas que nenhuma novela poderia falar por todas elas. Nós precisamos de mais novelas, mais novelistas, mais poetas e mais escritores. Se o coração ficou em Portugal? Absolutamente. Eles falam de Portugal com tanta saudade e tão persistentemente, mesmo sabendo que a vida material é melhor aqui nos Estados Unidos. E a palavra “Portugal” nunca é usada, é sempre “a minha terra”. Foi assim que eu ouvi falar da “minha terra”, que era como uma terra mágica ou o continente perdido da Atlântida. E a língua portuguesa era também essa linguagem perdida, que existia apenas nessas histórias. Eu nunca li muito acerca de Portugal em livros, não era possível encontrar muitas histórias acerca de nós. Era como se fôssemos de outro planeta.
MP — “Leaving Pico” foi classificado como parte daquilo que nos Estados Unidos se chama “literatura étnica”. Acha que isto é bom ou mau para o sucesso do livro?
FG — As pessoas na minha cidade leram o livro e reconheceram o seu mundo. Logo, desse ponto de vista ele é um sucesso. Recebeu também muitas críticas favoráveis onde a história, ser ou não ser sobre portugueses, é irrevelante. Mas se o classificam como “étnico”, melhor, pois há tão pouco escrito acerca de nós que deixem-me pelo menos espetar um dardo na parede. Eu sei que o livro não “fala” por todos os portugueses-americanos que aqui vivem, mas espero que lhes “fale” a eles. Eu espero que haja um outro escritor qualquer que pense “Eu posso fazer melhor do que isto”, ou “A minha experiência não é como esta, por isso vou escrever eu a minha própria”. A verdade é que não há suficiente literatura luso-americana, como também não suficientes personagens portugueses na literatura americana.
MP — O Frank e a Catherine Vaz são os dois únicos escritores luso-americanos editados pela chamada grande imprensa e a escreverem sobre temas relacionados com a nossa herança étnica. Acha que, de alguma forma, sente que representa a nossa comunidade? Por que é que as outras étnias têm tantos escritores de sucesso na América, a escreverem sobre coisas suas, e nós temos tão poucos?
FG — Bom, essa pergunta toca-me particularmente. Penso que a Catherine é um dos nossos grandes heróis. Ela rompeu uma importante barreira. O meu primeiro livro foi publicado há cerca de 10 anos, e apesar de ter vendido bem, uma colecção de poemas não tem o mesmo impacto de uma novela. Foi a Catherine que espetou o primeiro dardo na parede. E que dardo! A minha experiência é substancialmente diferente da dela, tal como o meu livro, embora ambas sejam válidas. A verdade é que são precisos mais escritores de descendência portuguesa. Somos tantos e espalhados por todo o lado que dois ou seis estão longe de nos representar. Mas a sua pergunta toca naquilo que eu penso ser fundamental: onde estão os escritores luso-americanos? Nós estamos aqui, claro, mas onde? Veja-se por exemplo os irlandeses-americanos, os afro-americanos, os mexico-americanos, os cuba-americanos. Todos eles possuem estantes cheias de livros nas melhores livrarias, fazem parte das antologias e a sua literatura é ensinada nas escolas. E nós, onde estamos? Porque razão somos invisíveis? Esta é uma questão que tem de ser discutida. Não sei como vai ser o futuro, espero continuar a escrever e rezo para que a Catherine também, mas a verdade é que precisamos de mais escritores, mais pessoas como George Monteiro, Onésimo T. de Almeida, Alice Clemente e outros que só agora estou a conhecer.
MP — Planeia escrever outra novela centrada na comunidade portuguesa?
FG —Sim, mas não sei como será. Neste momento trabalho em alguns poemas.
MP — Os seus poemas já foram traduzidos para português?
FG — O fantástico Vamberto de Freitas traduziu dois deles. Foi para mim uma honra. O meu português ainda não é muito bom, mas as traduções soaram-me muito bem. Há algum interesse em traduzir mais por parte de outras pessoas, mas nada de concreto até agora.
MP — Como é que é a sua relação com Portugal? Conhece o país? Vai lá muitas vezes?
FG — Já estive em Portugal, mas não visito regularmente o país. Para mim, essa terra continua a ser como uma lenda. Nunca estive nos Açores, mas espero lá ir esta Primavera. Não imagina como estou excitado, pois sempre olhei para as ilhas com um lugar místico.
MP — O Frank é também professor de Literatura e Escrita Criativa. Esta é a combinação perfeita com o escritor?
FG — Não. É muito difícil ensinar e escrever ao mesmo tempo. As minhas turmas são grandes e gerir o tempo é sempre difícil para mim. Quem me dera ter mais tempo só para a escrita! Neste momento ensino durante o dia e escrevo à noite. Espero tirar algum tempo num futuro próximo para começar a trabalhar numa nova novela. Vamos ver.
MP — Pretende vir a ser lembrado como poeta ou ficcionista?
FG — Ficaria muito contente só pelo facto de ser lembrado.



quinta-feira, fevereiro 23, 2006

BETH ANN FENNELLY

(actualizado) BETH ANN FENNELLY nasceu em Cranford, New Jersey, em 1971 e cresceu nos súburbios de Chicago. Formou-se na Universidade de Notre Dame e após a graduação, em 1993, passou um ano a ensinar inglês na República Checa. É actualmente professora na Universidade do Arkansas. Poem Not To Be Read At Your Wedding, descrito por Beth Ann como um anti-poema, foi o seu primeiro texto a ser publicado. Carmen Lund, sua companheira de quarto na faculdade, nunca chegou a receber outro presente de casamento para além deste poema.



POEM NOT TO BE READ AT YOUR WEDDING

You ask me for a poem about love
in lieu of a wedding present, trying to save me
money. For three nights I’ve lain under
glow-in-the-dark stars I’ve stuck to the ceiling
over my bed. I’ve listened to the songs
of the galaxy. Well, Carmen, I would rather
give you your third set of steak knives
than tell you what I know. Let me find you
some other store-bought present. Don’t
make me warn you of stars, how they see us
from that distance as miniature and breakable,
from the bride who tops the wedding cake
to the Mary on Pinto dashboards
holding her ripe red heart in her hands.



§ (tradução colectiva PoesiaIlimitada)



POEMA PARA NÃO SER LIDO NO TEU CASAMENTO

Pedes-me um poema sobre o amor
em lugar de uma prenda de casamento, tentando que eu poupe
dinheiro. Por três noites estendi-me sob
estrelas que-brilham-no-escuro colei-me ao tecto
sobre a minha cama. Escutei as canções
da galáxia. Bem, Carmen, eu preferiria antes
dar-te o teu terceiro jogo de facas de carne
a ter de te contar o que sei. Deixa que te descubra
algum outro presente de loja, comprado. Não
me faças avisar-te das estrelas, de como nos vêem
à distância, tão diminutas e quebráveis,
desde a noiva que encima o bolo de casamento
até Maria, no tablier de um Ford Pinto
segurando seu coração rubro e maduro entre mãos.



(Obrigado a formol (boa malha!), m. andrade e alfinete...)


terça-feira, fevereiro 14, 2006

A. R. AMMONS

A. R. AMMONS, poeta americano, nasceu em 1926, em Whiteville, na Carolina do Norte e faleceu em 2001, em Ithaca, Nova Iorque.



THEIR SEX LIFE

One failure on
Top of another



§



A VIDA SEXUAL DELES

Um falhanço em
Cima de outro



§ (ou, mais livremente:)



A VIDA SEXUAL DELES

Um falhanço
Atrás do outro



segunda-feira, fevereiro 13, 2006

BRIAN PATTEN

BRIAN PATTEN (Liverpool, 1946) é conhecido como um dos "poetas de Liverpool", juntamente com Adrian Henri e Roger McGough. A sua obra poética faz da poesia imediata e acessível às audiências, um dos seus principais desígnios, demonstrando uma natural habilidade para escrever sobre temas sérios recorrendo ao humor. Traduzido em numerosas línguas, é conhecido no Reino Unido pelo seu trabalho poético tanto quanto pelos numerosos livros infantis que publicou. A tradução de "Uma Folha de Erva" - em especial para este dia 14 de Fevereiro - inaugura a colaboração períodica que o poeta Jorge Sousa Braga manterá no Poesia Ilimitada.



UMA FOLHA DE ERVA

Pedes-me um poema.
Ofereço-te uma folha de erva.
Dizes que não chega.
Pedes-me um poema.

Eu digo que esta folha de erva basta.
Vestiu-se de orvalho.
É mais imediata
Do que alguma imagem minha.

Dizes que não é um poema.
É uma simples folha de erva e a erva
Não é suficientemente boa.
Ofereço-te uma folha de erva.

Estás indignada.
Dizes que é fácil oferecer uma folha de erva.
Que é absurdo.
Qualquer um pode oferecer uma folha de erva.

Pedes-me um poema.
E então escrevo uma tragédia àcerca
De como uma folha de erva
Se torna cada vez mais difícil de oferecer

E de como quanto mais envelheces
Uma folha de erva
Se torna mais difícil de aceitar.




sexta-feira, fevereiro 10, 2006

LUÍS MIGUEL QUEIRÓS

É um dos segredos mais bem guardados da poesia portuguesa contemporânea. A editora chama-se "exercicío de dizer", assim, em minúsculas. O livro, de Abril de 1991, tem por nome "As Imagens Dominantes". Só por isto - o que não é pouco - alguns destes poemas mereciam constar de todas as antologias poéticas que se fizeram e se farão acerca dos novíssimos.

Mas Luís Miguel Queirós gosta de dizer que não é poeta. Nem é fácil descobrir na net uma fotografia, a cidade berço, o ano de nascimento. Repetirá que são "coisas de quando ainda era poeta".

Más notícias, Luís Miguel. Quem escreve "Alarmes" nunca mais deixa de ser poeta. Alguns de nós não conseguirão nunca, por mais que tentemos, escrever um poema como este.


ALARMES

não desenroles tanto a noite
em tua pele. não equipares ao corpo
o tropel das palavras
na toalha. não encalhes em mim
tanta beleza. aperta
a blusa. recolhe do meu rosto
os teus olhares, alguma lágrima
brilhando sobre a mesa.

sossega. é cedo ainda
para o deserto trepidante
do desejo. não julgues saber já
que desenlaces
o meu corpo procura
sobre o teu. nem eu te ofereço
o armadilhado morango
do amor. apenas peço
que adormeças,
que dês lugar na cama
ao meu fantasma.

coloca o coração
numa órbita prudente. talvez não tarde
o tempo,
o lugar onde eu te diga
as palavras que desligam
os alarmes que instalei
em toda a alma.

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

CARLOS SARAIVA PINTO



CARLOS SARAIVA PINTO (n.1952) é autor de "O Viajante Transitório" (Edições Tema, 1997) e "Escrever foi um engano" (O Correio dos Navios, 2000) onde fui roubar este poema.




a mulher que me deu mais prazer
perdi-a um dia.

às vezes via a sua magreza
através da elegância das saias.

eu conhecia os relicários dos santos
os seus ossos distribuídos por
gavetas de prata
e sabia que um relógio
cria no cão pequeno
a ilusão do bater do coração da mãe.

o que eu beijava nessa mulher
era a sua respiração
o ar da sua santidade
que lhe impulsionava as ancas.

e ao seu lado eu dormia
como um cão enrolado
ouvindo o bater do coração.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

EMANUEL FÉLIX

EMANUEL FÉLIX


Angra do Heroismo
(24 de Outubro de 1936 - 14 de Fevereiro de 2004)




AS RAPARIGAS LÁ DE CASA (1997)

Como eu amei as raparigas lá de casa

discretas fabricantes da penumbra
guardavam o meu sono como se guardassem
o meu sonho
repetiam comigo as primeiras palavras
como se repetissem os meus versos
povoavam o silêncio da casa
anulando o chão os pés as portas por onde
saíam
deixando sempre um rasto de hortelã
traziam a manhã
cada manhã
o cheiro do pão fresco da humidade da terra
do leite acabado de ordenhar

(se voltassem a passar todas juntas agora
veríeis como ficava no ar o odor doce e materno
das manadas quando passam)

aproximavam-se as raparigas lá de casa
e eu escutava a inquieta maresia
dos seus corpos
umas vezes duros e frios como seixos
outras vezes tépidos como o interior dos frutos
no outono
penteavam-me
e as suas mãos eram leves e frescas como as folhas
na primavera

não me lembro da cor dos olhos quando olhava
os olhos das raparigas lá de casa
mas sei que era neles que se acendia
o sol
ou se agitava a superfície dos lagos
do jardim com lagos a que me levavam de mãos dadas
as raparigas lá de casa
que tinham namorados e com eles
traíam
a nossa indefinível cumplicidade

eu perdoava sempre e ainda agora perdoo
às raparigas lá de casa
porque sabia e sei que apenas o faziam
por ser esse o lado mau de sua inexplicável bondade
o vício da virtude da sua imensa ternura
da ternura inefável do meu primeiro amor
do meu amor pelas raparigas lá de casa.

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

A música da poesia: aliteração, assonância, consonância e rima


Não é apenas através da eufonia, da cacofonia ou da onomatopeia que se consegue sugerir ao leitor a presença de música num poema. Atentemos a esta passagem de “Livings”, um poema de “High Windows” do poeta inglês Philip Larkin (1922-1985), traduzida por Rui Carvalho Homem nas Edições Cotovia (2004), a quem peço emprestada a tradução:


“The wine heat temper and complexion:
Oath-enforced assertions fly
On rheumy fevers, resurrection,
Regicide and rabbit pie.”


“O vinho aquece o ânimo e as faces:
Pragueja-se a apoiar opiniões
Sobre a ressurreição ou a febre reumática,
O regicídio, ou a receita de empadões.”


A nível da denotação nada parece ligar “ressurreição”, “regicídio”, “febre reumática” e uma “receita de empadões”. O que se passa então neste poema? O efeito utilizado pelo inglês ao repetir palavras onde uma mesma consoante está presente, neste caso o “r” – inteligentemente traduzido por Rui Carvalho Homem ao forçar o vocábulo “receita” – chama-se aliteração. A aliteração pode ser definida como uma "sucessão de sons similares" e ocorre quando o poeta repete o mesmo som de consoante no inicio de sucessivas palavras – no caso da aliteração inicial – ou no meio de sucessivas palavras – caso da aliteração interna. À aliteração final dá-se antes o nome de rima. Atentemos a outro exemplo voltando a “Carta de Agosto”, de Inês Lourenço, um poema de tom sarcástico que nos fala de uma certa ideia de cidade nos meses de verão:


“(…) esquinas e esplanadas de cerveja, homens
(…) escarrando na noite (…)”


O que se pretende com o uso da aliteração? No caso de Inês Lourenço, parece-me evidente a intenção por parte da autora de desenhar, sonoramente, a imagem da rotina, como se tivesse escrito "as mesmas esquinas, as mesmas esplanadas, os mesmos homens", reforçando a ideia de um cenário boçal e homogéneo, de um certo nivelamento por baixo. No caso do inglês, é interessante pensar que Larkin possa ter pretendido com a repetição do “r” traçar o mínimo denominador comum entre momentos distintos de uma mesma conversa, ao desenhar o fio do discurso de - quatro? - bêbados que vão saltando de assunto em assunto, tão dispares possam ser entre eles, com a mesma insistência e cadência. Através do uso da aliteração, Larkin consegue desenhar-nos a imagem de que as conversas uma vez encetadas prolongam-se indefinidamente entre temas contíguos mantendo porém um fio condutor comum. Mas então porque não usou o poeta quatro vocábulos começados por outra consoante? Provavelmente porque pretendeu sugerir adicionalmente o efeito sonoro do ralar da conversa, do rolar da língua sobre os dentes. A aliteração pode ser inicial, como pode também ser interna, tal como sucede por exemplo no poema de Maria Teresa Horta (Lisboa, 1937), “Segredo”, incluído em “Minha Senhora de Mim” (1971), livro à data apreendido pela PIDE-DGS:


“Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça

nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa

(…)

Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar

nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar”


Neste caso, a repetição do som “ti” tem para mim o efeito de colar internamente a estrutura do poema nas suas duas primeiras estorfes, sublinhando adicionalmente qual o destinatário do texto. Quando o som repetido não é o de uma consoante mas o de uma vogal, estamos perante uma assonância. Tal como a aliteração, a assonância pode ser inicial, se ocorre no início de palavras sucessivas, ou interna, se ocorre no meio de palavras. No poema “Despertar” de Eugénio de Andrade, retirado de “Coração do Dia” (1958), encontrei estes versos:


“É um pássaro, é uma rosa,
é o mar que me acorda?”


onde noto a presença de uma assonância interna entre “pássaro” e “mar” e outra entre “rosa” e “acorda”. Aqui a intenção do poeta parece não ter sido outra que não a legitima vontade de embalar em música o poema. Finalmente, a rima - a aliteração e a assonância finais - é talvez o mecanismo mais capaz de aproximar a poesia da música. Ocorre num poema se duas ou mais palavras ou versos contêm vogais e consoantes similares ou idênticas. Os exemplos são virtualmente infinitos. A rima pode ser exacta – como ocorre em “não” e “pão” – ou aproximada/imperfeita – como ocorre em “cão” e “com”. Chama-se consonância à rima imperfeita onde se mantêm as mesmas consoantes mas diferentes vogais – como acontece em “sal” e “sol”. Quase sinónimo de música, a rima pode também ser interna ou final, dependendo da sua localização no interior do verso ou no final o verso. Pessoalmente, como bem notou Frederico Lourenço, não é um recurso que eu utilize preferencialmente dado me parecer algo clássico e claramente não servir a minha procura de contemporaneidade, preferindo antes o ritmo e a métrica para trazer música a poesia. Mas tem-se assistido a um renascimento do interesse nas infinitas possibilidades da rima, ao ponto de no meio anglo-saxónico se designar de Novos Formalistas à corrente de poetas que desenvolvem actualmente aquele recurso. E não é, de todo, algo que esteja esgotado se atentarmos à obra de Vasco Graça Moura (Porto, 1942) ou mesmo Fernando Pinto do Amaral (Lisboa, 1960), que conseguem nos seguintes exemplos - e com notável rigor - poemas de marcada contemporaneidade:


barbie em diagonal

sem percorrer os dois lados da praça,
a atravessá-la pela hipotenusa,
de mini-saia curta que esvoaça
e mais ao léu com top em vez de blusa,

o tornozelo fino a dar-lhe a raça
nervosa e descuidada que produza
reflexos do seu corpo na vidraça
das lojas, dentro e fora, esguia e lusa

no porte de modelo, longas pernas
e cabelos ao vento. mas depressa,
que tão segura vai, se vê do seu

olhar que não atenta nem sequer nas
surpresas de viés quando atravessa:
tudo o que dá foi isto que me deu.

(Vasco Graça Moura, uma carta no inverno, 1997)


§


Relâmpago

Rompe-se a escuridão quando o olhar
para uma face o mundo se ilumina
com uma claridade repentina
capaz de, só por si, fazer brilhar

a substância tão irregular
de tudo o que se acende na retina
e através da luz se dissemina
por entre imagens vãs, até formar

um fluido movimento, uma paisagem
a que estes olhos quase não reagem
salvo se nesse instante o rosto for

transfigurado pela fantasia.
E às vezes é só isso que anuncia
aquilo a que chamamos o amor.

(Fernando Pinto do Amaral, Às Cegas, 1997)


no primeiro caso obedecendo ao esquema abab abab cde cde, e no segundo ao esquema abba abba ccd eed. É por estas - e por outras - que cada poema dança sua música.


quarta-feira, fevereiro 01, 2006

A música da poesia: eufonia, cacofonia e onomatopeia


Como facilmente se compreenderá – e como demonstra em abundância o post de ontem, – uma coisa é um poema, outra bem diferente é a letra de uma canção. Poesia e canção foram, em tempos, uma e a mesma arte mas desde há alguns séculos que se tornaram artes distintas, embora aparentadas. Assim, não é infrequente atentarmos à beleza de um texto poético elogiando a sua “música” - como acontece com praticamente toda a poesia de Eugénio de Andrade, - do mesmo modo que podemos gostar de uma grande canção e elogiarmos a sua letra mais “poética” - como ocorre com “Rattlesnakes”, de Lloyd Cole ou diversas letras de Bob Dylan, Sérgio Godinho ou Jorge Palma, entre outros. Mas, uma canção é feita para ser cantada – com excepção do rap, que regressa um pouco às origens na medida em que a letra é, em parte, para ser dita, – e um poema é para ser dito ou lido, e não cantado. Tem portanto de se aguentar - o poema - sem uma música de base que o sustente. Ora, há poetas que não dão isso por garantido, daí que deitem mão a diversos mecanismos para “dar música” aos seus poemas. E que mecanismos são esses? Basicamente efeitos de som e ritmo. Desde logo ao nível da palavra, o atómo do poema. A escolha do léxico do poema é fundamental. Há poetas que têm um "dicionário" próprio. As "dunas" de Fão pertencem ao Eugénio de Andrade, por exemplo. As "ilhas" gregas a Sophia. O "mar" de Timor a Cinnati. E por aí fora... (As "tabernas" de Lisboa ao Manuel de Freitas, já me esquecia...). Depois, a forma como as palavras se combinam entre si. Chama-se eufonia ao agradável efeito sonoro que produzem palavras justapostas num poema. Ao efeito oposto chama-se cacofonia. Há algo de subjectivo nesta avaliação, no sentido em que – como tanta coisa em poesia, – cabe ao leitor decidir - sentindo - se esse efeito sonoro lhe é agradável ou desagradável. Devemos a Luís de Camões (1526?-1580) o exemplo mais famoso de cacofonia na poesia portuguesa:


“Alma minha gentil que te partiste”


que para alguns pode ser uma cacofonia mas para mim é uma eufonia. Este é, aliás, um dos artifícios mais usados em certas frases anedóticas, do género:


O meu nome é Passos Dias Aguiar Mota.

ou

Jamais chamaria ao meu filho Adolfo Dias.


(esse exemplo era mesmo necessário, João Luís???)

No entanto, a eufonia e a cacofonia podem estar presentes sem que da justaposição de palavras surja uma nova palavra com sentido autónomo. Tudo se passa ao nível do som e o factor determinante são as consoantes. Há consoantes fáceis de pronunciar e outras mais difíceis. Algumas parece que deslizam, que se dizem com os lábios entreabertos e com o nariz como o “m”, o “n”, o “p”, e outras mais agrestes que se dizem com os dentes e com a língua como “r”, o “t” ou o “x”, e outras ainda que se pronunciam com a boca toda como o “h” ou o “j”. Umas são ditas em inspiração, outras em expiração. Tudo isto - e mais - resulta em música. Quando se escreve um poema acaba por estar atento ao modo como o poema soa. Nem que não se leia em voz alta, está-se permanentemente a ouvi-lo na mente. A grande maioria das vezes esse processo é subconsciente, note-se. Mas a verdade é que as consoantes das palavras que se usa, sejam mais suaves ou mais agrestes, concorrem – e isto é o importante, – para o sentido e contexto do poema. Quando Inês Lourenço (Porto, 1942) escreve em “Carta de Agosto


objectos ressequidos

ou

cortejo carvoro


obtém um efeito cacofónico agreste – em que as consoantes quase se atropelam sequencialmente umas às outras, – mas que serve na perfeição o sentido mais sarcástico do poema, bem diferente do suave efeito eufónico do primeiro verso de “À boca do Cântaro” de Eugénio de Andrade (1923-2004), onde as consoantes quase que deslizam:


Caminha sílaba a sílaba


Tudo isto é lido e “ouvido” pelo leitor como música, e idealmente soma-se ao sentido do poema, servindo-o. A onomatopeia opera por um processo diferente. Aí há uma tentativa de representar uma coisa ou uma acção através do uso de uma palavra que imita o som a ela associado. Há palavras que são por natureza “onomatopaicas”, e isso tem tudo a ver com a sua origem semântica. Experimente por exemplo pronunciar a palavra “múrmurio” com os lábios semicerrados: note como está desde logo a murmurar. Também o vocábulo “serpente”, graças ao “s” inicial, me parece rastejar sozinho, do mesmo modo que a palavra “borboleta” me parece a mim, por duas vezes, que bate asas e voa:


A serpente esconde-se
(Luíza Neto Jorge, Dos Répteis, 1966)


Borboleta diurna
(António Osório, Zoo de Homens, 1990)


Porém, o termo onomatopeia aplica-se mais correctamente a palavras como “zás”, “crash”, “bang”, “splash” que transportam em si o som que significam:


“Aves devoram o lixo.
Debatem-se sob o peso da gula
investindo ciladas, disposições

de onde se isenta a alma.
Flap, flap, flap, fazem asas
no negro plástico.”

(Luís Quintais, Uma Inocência, 2002)